segunda-feira, 9 de agosto de 2010

OFÍCIO DE REPRESENTAÇÃO AO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL

São José do Rio Preto, 09 de abril de 2010.

Ao Excelentíssimo Procurador do Ministério Público Federal

Eu, Renan Marino, brasileiro, médico, professor auxiliar de ensino da FAMERP – Faculdade de Medicina de S. J. Rio Preto/SP, mestre em ciências da saúde desde 2006 por esta mesma instituição, com dedicação aos estudos epidemiológicos e investigação clínica de dengue nos últimos dez anos, venho em caráter de urgência perante Vossa Excelência apresentar representação em face do Ministério da Saúde, pelas razões a seguir aduzidas:

1) É fato que a indicação do Paracetamol como droga de escolha para tratamento dos principais sintomas da dengue – febre e dor – pelo Ministério da Saúde foi hegemônica até 2001, quando a crescente ocorrência de graves alterações do fígado em grande número de doentes com dengue tratados pelo Paracetamol, levou o Ministério da Saúde a também recomendar o uso da Dipirona como opção para tratamento da dengue. Também é fato notório que as epidemias de dengue no Brasil têm se apresentado com freqüência e gravidade cada vez maiores.

2) Como decorrência da indicação exclusiva do Paracetamol para tratamento da dengue por décadas, a classe médica e mesmo a população, que passou a fazer uso desta droga por auto-medicação, adotou o falso conceito de sua eficácia e segurança farmacológica, evidentemente contando com o oportuno marketing agressivo da Janssen-Cilag, marca detentora da patente do princípio ativo Paracetamol, conhecido pelo nome fantasia Tylenol, propriedade do grupo Johnson & Johnson do Brasil Ind. Com. de Produtos para Saúde Ltda. Assim, como exemplo amostral verificamos em pesquisas realizadas por nós em 2007, que o Paracetamol era utilizado em 89,0% dos casos de dengue, sendo que em 16,0% dos casos encontrava-se associado com a Dipirona e em apenas 6% dos casos utilizava-se exclusivamente Dipirona, conforme abaixo:

3) É flagrante a defasagem do protocolo do Ministério da Saúde que insiste em indicar o Paracetamol nos casos de dengue, droga com maior potencial lesivo ao fígado em uso atualmente no mundo, uma vez que já em 2002, as pesquisas com microscopia eletrônica mostravam que a dengue na verdade corresponde a um quadro de hepatite viral causado por qualquer um dos 04 sorotipos do vírus da dengue – DEN1 - DEN2 - DEN3 – DEN4, em razão da marcada hepatoxicidade desta classe de vírus – flavivírus (1) - a qual também pertencem os agentes etiológicos da hepatite C e febre amarela (2). Estes achados confirmaram as conclusões de Wahid et al, em Southeast Asian Trop Med Public Health, vol. 31, nº.2, june 2000, que já mostrava que as alterações hepáticas na dengue não são devidas às complicações, mas fazem parte da história natural da doença, conclusões de fundamental importância para a compreensão da fisiopatologia da dengue clássica e da evolução para a forma hemorrágica ou mesmo para quadros de dengue com complicações, pois coloca na dependência direta do potencial de hepatoxicidade da medicação empregada no controle da febre e dores características desta doença, o prognóstico favorável ou desfavorável do paciente. Na prática funciona como um marcador de chances de ocorrência de agravos na evolução dos casos de dengue: quanto mais se usa Paracetamol mais complicações hemorrágicas e óbitos são registrados.
Se até então, o Ministério da Saúde poderia alegar desconhecimento sobre o assunto e permanecer em silêncio sobre a questão, hoje isto seria algo impensável, uma vez que coloca decisivamente em risco a saúde da população.
1.Bier, Otto, Bacteriologia e Imunologia, 1977, p. 713. Melhoramentos, São Paulo.
2.Bier, Otto, Bacteriologia e Imunologia, 1977, p. 714. Melhoramentos, São Paulo


4) O surgimento de formas hemorrágicas e choque na dengue a partir de 1950, no sudeste asiático e depois em outras regiões, levaram a várias hipóteses para explicar a mudança de padrão clínico da dengue e na ocasião a hipótese mais considerada foi a teoria seqüencial desenvolvida por Halstead e cols., que afirmava que os casos graves se deviam à presença de anticorpos contra outro sorotipo do vírus da dengue em indivíduos que haviam apresentado uma infecção anterior, no entanto, esta hipótese não foi comprovada e caiu por terra em razão do grande número de casos de dengue hemorrágica que não apresentavam sorologia demonstrando infecção prévia.(3)

5) Desde sempre se soube que o medicamento Paracetamol apresenta importante hepatoxicidade, sendo possível traçar um paralelo a partir do seu lançamento na década de 50 com a ocorrência dos primeiros casos de dengue hemorrágica, uma vez que desde sempre a dengue foi considerada uma doença benigna. Mesmo assim, passou desapercebido à classe médica que em 1995, o Paracetamol respondia por 58% dos casos de insuficiência hepática nos EUA, bem como principal responsável nas indicações de transplante de fígado como terapêutica heróica nos casos de maior gravidade (4). Em 1.999, já representava a principal causa de insuficiência hepática aguda na Inglaterra (5). Diante disto, resulta ser inadmissível e paradoxal aceitarmos que esta droga, com tamanha capacidade de destruição tecidual, continue a ser recomendada pelo Ministério da Saúde exatamente em casos de epidemia de dengue, onde o fígado é o principal órgão afetado.

6) É sabido que o fígado lesado em até 80% pela intoxicação pelo Paracetamol (6), não manifesta sintomatologia nas primeiras 72 horas, podendo inclusive evoluir silenciosamente. No 4º dia pós intoxicação, o indivíduo apresenta súbita dor abdominal, hipotensão, hipotermia, transtornos da coagulação com hemorragias, choque cardiovascular, podendo evoluir para óbito. Aqui chamamos a atenção para o fato destes sintomas, intoxicação aguda pelo Paracetamol, serem exatamente os mesmos sintomas atribuídos à dengue hemorrágica e síndrome do choque da dengue.

3.Farhat, Calil Kairalla et al, Infectologia Pediátrica, 1999, p. 378. Atheneu, São Paulo
4.Tibbs and Williams, Journal of Hepatology, 1955;22 (suppl):68-73
5.Tschiodt, Atillasory. Liver Transpl. Surg. 1999; 5:29-34
6.Waksman & Gikas Ver. Paul Pediatria, vol 20, nº.16, Dezembro de 2002.

Esta apavorante coincidência nos coloca diante da mais grave iatrogenia médica registrada em nosso país desde a tragédia da Talidomida em 1.950.
A medicina brasileira involuntariamente ou induzida por uma conduta anacrônica e persistente do Ministério da Saúde vem incorrendo sistematicamente ao longo dos anos em erro essencial de julgamento, resultando em evidente negligência, aceitando sem maiores cuidados e sem critérios mais definidos, o diagnóstico incorreto de dengue hemorrágica em lugar de apontar o verdadeiro responsável e desencadeante dos agravos nos casos de dengue: a ação deletéria do Paracetamol. Se esta droga que é referência do paradigma de hepatite medicamentosa já é lesiva a um fígado normal, não é difícil imaginar a extensão dos graves transtornos desencadeados quando a medicação é administrada a um paciente com quadro de hepatite viral causada pelo vírus da dengue: plaquetopenia, insuficiência hepática aguda, hipotensão, hemorragias, choque e óbito.

7) É preciso levar-se em conta que a principal e única justificativa do fabricante do Tylenol quanto aos seus riscos de utilização na dengue é a de que a toxicidade do mesmo é estritamente dose-dependente, podendo ocorrer apenas em casos de super-dosagem intencional, ou acidental, quando tomado inadvertidamente nas diversas co-formulações (7). É o que podemos observar no Jornal Bom Dia de nossa cidade, datado de 09 de dezembro de 2008, em matéria intitulada “Tylenol contra-ataca”, informando que a Johnson & Johnson, fabricante do medicamento no Brasil, reuniu médicos rio-pretenses, farmacêuticos, balconistas e profissionais da saúde no Hotel Michelangelo, para participar da campanha “Dengue: verdades que você precisa saber”. Não por acaso na semana anterior havíamos lançado o alerta sobre o risco do Paracetamol na dengue neste mesmo Jornal. O infectologista Artur Timerman, da USP, contratado pelo referido Laboratório, ministrou palestra de atualização sobre a dengue neste encontro, onde afirma que o Paracetamol representa a principal indicação do Ministério da Saúde na dengue e tenta desmistificar os riscos sobre seu uso, afirmando que a grande dúvida é se na verdade prejudica ou não o fígado, declarando ainda que a droga é segura e que seu único problema está na super-dosagem. Estas afirmações rapidamente se mostram incompletas, inverídicas e até mesmo capciosas, se considerarmos os estudos de Guzman Kouri (8), que não deixam
7.II Painel de Atualização sobre Dengue, Limay Editora, setembro de 2009, São Paulo.
8.Guzmán, Kouri, Lancet, jan, 2002.


dúvidas que a toxicidade do Paracetamol tem relação direta com as situações de risco, que são condições em que o organismo apresenta importante diminuição de glutationa, substância produzida pelo fígado, que tem a função de imediatamente neutralizar os produtos intermediários altamente reativos do metabolismo do Paracetamol pela via do Citocromo P450, que uma vez livres e não inativados, se ligam irreversivelmente às paredes das células hepáticas, levando-as à morte celular. No Pediatrics, março/2002, conceituada revista médica, estão clinicamente definidas as situações de risco em que o Paracetamol apresenta alta toxicidade mesmo em doses abaixo das consideradas terapêuticas (04 g/dia para adultos e 75 mg/kg/dia para crianças), conforme abaixo:

- Crianças menores de 10 anos;
- Infecções virais (dengue por exemplo);
- Diabetes mellitus;
- Obesidade;
- Histórico familiar de hepatoxicidade;
- Lesão hepática;
- Desidratação;
- Jejum prolongado (mais de 12 h.).

8) Não bastassem os fatos já citados, o mesmo Guzman Kouri, alertava no Lancet, janeiro 2002, para o fato de não existir no mundo um estudo duplo-cego sequer avaliando o Paracetamol em casos de dengue, o que significa, portanto, que não há trabalhos mostrando que seja viável e seguro o uso do Paracetamol em pacientes com dengue, situação esta que permanece inalterada até hoje.

9) Uma vez que na verdade nenhum analgésico/antitérmico tenha sido devidamente avaliados em estudos clínicos mais extensos e, portanto, mais controlados, no cenário atual embasado no melhor conhecimento de aspectos da fisiopatologia da dengue e do metabolismo de fármacos indicados para controle da febre e dor, devemos considerar que o critério-diretor para escolha da medicação mais segura a ser empregada especificamente nos casos de dengue, deva atender às condições seguintes:

a) excluir drogas que interfiram com a agregação plaquetária e coagulação como é o caso do ácido acetilsalisílico; b) excluir drogas que sejam hepatotóxicas como é o caso já descrito do Paracetamol, que resulta em necrose hepática, plaquetopenia e transtornos circulatórios com hemorragias; c) excluir drogas que possam apresentar ação antiinflamatória afetando a agregação plaquetária e assim interferir na coagulação, como é o caso do Ibuprofeno em doses de 20 mg/kg/dose para crianças ou 2,4 g. para adultos. Assim resulta que, diante dos novos estudos, apenas a Dipirona representa a opção mais satisfatória, preenchendo os critérios mínimos de biossegurança para ser utilizada na dengue, constando inclusive do protocolo atual do Ministério da Saúde como alternativa ao Paracetamol.

10) No auge da epidemia de 2008 na cidade do Rio de Janeiro que resultou em mais de 100 mortes por dengue hemorrágica, das quais em torno de 20 gestantes entre o 4º e 7º mês de gestação, presumivelmente, medicadas com Paracetamol, apesar do FDA – Food and Drug Adminstration – classificar esta droga como de risco “B”, ou seja, não há estudos adequados em gestantes para indicação do Paracetamol e muito mais grave ainda, se considerarmos que a própria bula do medicamento Tylenol condiciona a sua utilização em infecções virais, como é o caso da dengue, à avaliação dos benefícios e riscos potenciais ao paciente, conforme BPR Guia de Remédios, 8ª Edição, 2006-2007. Isto também porque embora por razões imprecisas e sem bases científicas justificáveis, o Paracetamol representa consenso e verdadeiro dogma na obstetrícia brasileira, uma perigosa unanimidade quanto à medicação analgésica/antitérmica a ser usada na gravidez. Na ocasião o Ministro da Saúde, José Gomes Temporão, afirmou a Agencia Estado em 7 abril de 2008 o que segue:
O ministro da Saúde, José Gomes Temporão, disse hoje, no Rio, que pedirá à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) que envie carta aos laboratórios farmacêuticos para que suspendam, voluntariamente, a publicidade de remédios feitos com o analgésico paracetamol.
Pela manhã, Temporão havia afirmado que solicitaria à Anvisa a proibição da propaganda nos meios de comunicação social, mas recuou porque não há lei que permita a adoção de tal medida.
Segundo ele, algumas mortes que são investigadas podem ter ocorrido por “excesso do uso” do medicamento, que é o mais prescrito pelos médicos em caso de dengue. Temporão ressaltou que a suspensão das mensagens publicitárias deve ser feita apenas durante a epidemia. O ministro da Saúde também pediu à indústria farmacêutica que, nas mensagens, dêem ênfase à necessidade de se procurar um médico antes de tomar qualquer substância.
De acordo com alguns especialistas, não é recomendado o uso de nenhum antitérmico, caso do paracetamol, como tratamento para a doença, pois não há estudos que assegurem a segurança e eficácia.
Na opinião do Ministro, José Gomes Temporão, epidemias de dengue são inevitáveis, porém, fica claro que uma vez afastado o Paracetamol, sem dúvida o principal fator de agravo iatrogênico, determinante direto da evolução dos casos habituais, mais simples de dengue clássica para casos mais graves de dengue hemorrágica e dengue com complicações, teremos a mortalidade da dengue sob controle.

11) É importante destacar a gravidade que as epidemias de dengue têm representado para a população, que entregue à orientações equivocadas é colocada em situação de risco de morte e agravos com a conivência do Ministério da Saúde, cujas orientações são rigorosamente seguidas sem nenhuma reflexão ou senso crítico pela maioria da classe médica. O aumento da incidência de casos graves, muitos dos quais com evolução para óbito, tem sido uma constante a cada nova epidemia de dengue, guardando uma relação diretamente proporcional ao uso prevalente e disseminado do Paracetamol no Brasil, uma vez que esta conduta é explícita e subliminarmente estimulada há décadas seguidas pelo próprio Ministério da Saúde. O Jornal Folha de São Paulo datado de 31 de março de 2010, página C3 informa “Em todo o país, o número de casos de dengue de janeiro até meados de fevereiro deste ano cresceu 109% em relação a igual período de 2009 – passou de 51.873 para 108.640.” Já o Jornal O Estado de São Paulo, datado de 02 de abril de 2010, página A16, registra que “No estado de São Paulo o governo contabilizou 34.282 casos de dengue no primeiro trimestre do ano, com 15 mortes confirmadas. O número de doentes já é mais de quatro vezes superior ao registrado em 2009 (7.960). Mais da metade das ocorrências em São Paulo está concentrada em apenas cinco cidades: Ribeirão Preto, S. J. Rio Preto, Guarujá, São Vicente e Araçatuba.” Para se ter idéia da confusão e falta de confiabilidade a que somos lançados, o Jornal Diário da Região de nossa cidade, traz na edição de 04 de abril, o Editorial Dengue e Transparência relatando um fato inusitado. “A cidade que chegou a ser declarada em fevereiro a “campeã” estadual em número de doentes seguida por Ribeirão Preto parou a contagem em 6.810 casos no dia 22 de março. Para espanto geral, dados da Secretaria de Estado da Saúde divulgados nesta semana apontam agora para Ribeirão Preto como a cidade líder em número da doença (6.928), seguida de Rio Preto, com 3414. É patente que os dados estão defasados.” O mesmo Editorial nos informa que até esta data registramos duas mortes causadas pela dengue, 25 casos hemorrágicos e 32 casos de dengue com complicações, com o agravante de que estes dados não foram atualizados por duas semanas. Já na edição de 08 de abril de 2010, o mesmo Jornal registra o total de 08 mortes causadas por dengue, com 02 casos suspeitos ainda não divulgados somente no primeiro trimestre deste ano, triste recorde que supera em muito as 03 mortes anteriormente ocorridas em nossa cidade no período de 1990 a 2009. Assim, no momento, Rio Preto e Guarujá empatam no ranking dos municípios com mais óbitos por dengue no estado de São Paulo. Os 33 casos de dengue hemorrágica deste ano já superam em 450%, as ocorrências de 2008 (06 casos), até então ano que apresentava maior número.

Diante do exposto, considerando que os fatos arrolados demonstram inequivocamente que a continuidade da indicação do Paracetamol pelo Ministério da Saúde nos casos de dengue representa um fato grave e despropositado que fere o bom senso e a lógica científica, requeremos que a sua recomendação seja imediatamente suspensa nestes casos, no mínimo pelo período em que seja possível um maior aprofundamento no estudo das questões levantadas e embasadas em observações clínicas, estudos e literatura nacional e internacional, publicadas sobre o assunto para que não continuemos incorrendo em omissão, negligência, imperícia e imprudência, salvaguardando desta forma o direito à vida e à saúde da população brasileira, que vem sendo sistematicamente exposta a sérios riscos perfeitamente evitáveis, por absoluto e inaceitável descaso das autoridades sanitárias, uma vez que entre nós a dengue não tem sido uma exceção, mas sim um fato quase cotidiano. Esta medida representará sem dúvida o maior programa de redução de danos e mortes por dengue já realizado em nosso país nos últimos 30 anos, organizando os esforços em Saúde Pública para o enfrentamento das epidemias em bases racionais, cientificas, possibilitando o controle definitivo do problema.

RENAN MARINO
CRM: 35896

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